1. EDUCANDO O OLHAR DA OBSERVAÇÃO
(Madalena Freire)
Aprendizagem do olhar
Não fomos educados para olhar pensando o mundo, a realidade, nós mesmos. Nosso olhar cristalizado nos estereótipos produziu em nós paralisia, fatalismo, cegueira.
Para romper esse modelo autoritário, a observação é a ferramenta básica neste aprendizado da construção do olhar sensível e pensante.
Olhar que envolve ATENÇÃO e PRESENÇA. Atenção que, segundo "Simone Weil" é a mais alta forma de generosidade. Atenção que envolve sintonia consigo mesmo, com o grupo. Concentração do olhar inclui escuta de silêncios e ruídos na comunicação.
O ver e o escutar fazem parte do processo da construção desse olhar. Também não fomos educados para a escuta. Em geral não ouvimos o que o outro fala, mas sim o que gostaríamos de ouvir. Neste sentido, imaginamos o que o outro estaria falando... Não partimos de sua fala, mas de nossa fala interior. Reproduzimos desse modo, o monólogo que nos ensinaram.
O mesmo acontece em relação ao nosso olhar estereotipado, parado, querendo ver só o que nos agrada, o que sabemos, também reproduzindo um olhar de monólogo. Um olhar e uma escuta dessintonizada, alienada da realidade do grupo. Buscando ver e escutar não o grupo (ou o educando) real, mas o que temos na nossa imaginação, fantasia - a criança do livro, o grupo idealizado.
Ver e Ouvir demanda implicação, entrega ao outro.
Estar aberto para vê-Io e/ou ouvi-Io como é, no que diz, partindo de suas hipóteses, de seu pensar. É buscar a sintonia com o ritmo do outro, do grupo, adequando em harmonia ao nosso.
Para tanto, também necessitamos estar concentrados com nosso ritmo interno. A ação de olhar e escutar é um sair de si para ver o outro e a realidade segundo seus próprios pontos de vista, segundo sua história.
Só podemos olhar o outro e sua história se temos conosco mesmo uma abertura de aprendiz que se observa (se estuda) em sua própria história.
Neste sentido, a ação de olhar é um ato de estudar a si próprio, a realidade, o grupo à luz da teoria que nos inspira. Pois sempre "só vejo o que sei" (Jean Piaget). Na ação de se perguntar sobre o que vemos é que rompemos com as insuficiências desse saber; e assim, podemos voltar à teoria para ampliar nosso pensamento e nosso olhar.
Este aprendizado de olhar estudioso, curioso, questionador, pesquisador, envolve ações exercitadas do pensar: o classificar, o selecionar, o ordenar, o comparar, o resumir, para assim poder interpretar os significados lidos. Neste sentido o olhar e a escuta envolvem uma AÇÃO altamente movimentada, reflexiva, estudiosa.
Neste processo de aprendizagem venho constatando alguns movimentos na sua construção:
● o movimento de concentração para a escuta do próprio ritmo, aquecimento do próprio olhar e registro da pauta para a observação. O que se quer observar, que hipóteses se quer checar, o que se intui que não se vê, não se entende, não se sabe qual o significado, etc.;
● o movimento que se dá no registro das observações, seguindo o que cada um se propôs na pauta planejada. Onde o desafio está em sair de si para colher os dados da realidade significativa e não da idealizada;
● o movimento de trazer para dentro de si a realidade observada, registrada, para assim poder pensá-la, interpretá-la. É enquanto reflito sobre o que vi, que a ação de estudar extrapola o patamar anterior. Neste movimento podemos nos dar conta do que ainda não sabemos, pois iremos nos defrontar com nossas hipóteses adequadas e inadequadas e construir um planejamento do que falta observar, compreender, estudar.
Este planejamento aponta para dois movimentos:
Um, que vai lidar com a construção da nossa pauta de observação segundo os movimentos já mencionados para sua construção. Ou seja, a observação avalia, diagnostica a zona real do conhecimento para poder, significativamente, lançar (casando conteúdos da matéria com conteúdos do sujeito, da realidade) os desafios da zona proximal do conhecimento a ser explorado.
Outro que concentra-se na devolução (sair de si, outra vez...) para construção de propostas de atividades (enraizadas nas observações feitas para o grupo onde novos desafios irão ser trabalhados).
Podemos concluir, portanto, que o ato de observar envolve todos os outros instrumentos: a reflexão, a avaliação e o planejamento, pois todos se intercruzam no processo dialético de pensar a realidade.
DIRECIONANDO O OLHAR
O instrumento da observação apura o olhar (e todos os sentidos) tanto do educador quanto do educando para a leitura diagnóstico de faltas e necessidades da realidade pedagógica.
Para objetivar esse aprendizado o educador direciona o olhar para três focos que sedimentam a construção da aula:
o foco da aprendizagem individual e/ou coletiva;
o foco da dinâmica na construção do encontro;
o foco da coordenação em relação ao seu desempenho na construção da aula.
Por que é necessário focalizar o olhar? Olhar sem pauta se dispersa. Olhar pesquisador tem planejamento prévio da hipótese que se vai perseguir durante a aula, em cada um desses três focos.
No início desse aprendizado, em qualquer grupo, é adequado ter somente um foco para priorizar, ou na aprendizagem, ou na dinâmica ou na coordenação. Dado como suposto a grande dificuldade de concentração do olhar, do pensamento e da participação ao mesmo tempo, é aconselhável priorizar um foco por vez.
No foco da aprendizagem o desafio do educador é lançar questões que cercam a observação do educando em relação ao seu próprio processo (ou do grupo) de aprendizagem. Questões como:
- Que momentos de mal estar eu vivi no decorrer da aula? – O que de mais significativo constatei que sei e que não sei? etc. Com estas questões lançadas no início do encontro - e que serão no final retomadas na avaliação da aula -, o desafio é obrigar o educando a construir um distanciamento (reflexivo) sobre seu processo de aprendizagem durante o desenvolvimento da aula.
Já que estas questões lançadas no início da aula são no final retomadas na atividade de avaliação, podemos concluir que estas questões, chamadas por mim de Pontos de Observação, constituem a pauta da avaliação. Ou seja, os pontos de observação constituem o planejamento da avaliação da aula.
Os pontos de observação em cada foco, apoiam a construção do aprendizado do olhar - olhar a dinâmica do encontro, dinâmica que não significa criar atividade de sensibilização, dinâmica que aqui é entendida como o jeito, o ritmo que o grupo viveu a construção das interações na aula, acelerado, arrastado, em desarmonia, em harmonia etc. Dinâmica que envolve observar o grupo juntamente com a coordenação.
Questões neste foco poderão lidar com: - Quais os movimentos rítmicos que o grupo viveu durante sua participação na aula? ou, - Como o grupo expressou suas divergências e/ou concordâncias durante a aula?
Aprendendo a olhar a si próprio, ao grupo, a dinâmica que vai sendo composta, vai alicerçando a capacidade de ler e estudar a realidade.
Observar a coordenação faz parte do pensar o que é ser educador, e o que é ser educando. É enquanto o educando observa o ensinar da coordenação, que ele aprende a ser melhor aluno e também melhor educador. Pelo simples fato de que, diante do modelo, ele pensa, reflete, distancia-se, constrói conceitos - teoria do que é aprender e ensinar.
Também observando, a coordenação inicia seu processo de desmistificação da mesma. Começa a constatar que ela comete erros, derrapadas, incoerências, etc.
Questões neste foco podem cercar:
Como a coordenação construiu sua sintonia com o conteúdo da matéria e o significativo do grupo?
Como a coordenação lidou com os conflitos, as divergências, as diferenças durante a aula? etc.
Estar sendo observado também é instrumento valioso para a coordenação, pois nesse retorno de seus alunos pode ter uma avaliação do que realmente está conseguindo ensinar. Se está conseguindo atingir seus objetivos ou o que falta construir de intervenções, encaminhamentos, devoluções, para a próxima aula.
Neste espaço onde o educando faz devoluções sobre seu ensinar é aonde o educador vai podendo construir-se (educando-se) também enquanto aprendiz.
SOBRE A PRÁTICA DO INSTRUMENTO DA OBSERVAÇÃO ENTRE EDUCADOR E EDUCANDO
Educador aprende a observar. Educando também.
Educando troca com educando, coordenado pelo educador, sobre o que se observa.
Educador troca com educador, coordenado por um outro educador, sobre o que se observa.
Educador interage com educando devolvendo-lhe, espelhando-lhe suas conquistas e faltas na situação observada.
O educador quando desempenha a função de observador, como co-produtor que foi da pauta e do planejamento do professor, tem urna atuação vivamente reflexiva porém silenciosa para o grupo. Silenciosa porque ele não está na função de professor do grupo. Ele é um outro educador, com uma tarefa diferenciada, específica: - observar a coordenação no seu ensinar, na sua interação com o grupo e seus participantes.
Ele não faz intervenções nem devoluções para o grupo porque não é o educador do grupo. Sua participação se dá em outro nível.
Como também, poderá haver certas atividades onde sua participação com intervenções seja planejada anteriormente.
Ele faz devoluções de suas observações para o educador do grupo. Neste sentido, um educador, quando está nesta função, é educador do educador. Por isso mesmo não interage com os educandos de seu educador, mas somente com ele (educador), devolvendo-lhe suas observações, espelhando conquistas e faltas na prática deste.
SOBRE A AÇÃO DO OBSERVADOR
Observar não é invadir o espaço do outro, sem pauta, sem planejamento, nem devolução, e muito menos sem encontro marcado...
Observar uma situação pedagógica é olhá-la, fitá-la, mirá-la, admirá-la, para ser iluminada por ela.
Observar uma situação pedagógica não é vigiá-la, mas sim, fazer vigília por ela, isto é, estar e permanecer acordado por ela, na cumplicidade da construção do projeto, na cumplicidade pedagógica.
2. O REGISTRO E A REFLEXÃO DO EDUCADOR
Sobre o ato de escrever
"De tudo que está escrito, eu amo somente aquilo que o homem escrever com o seu próprio sangue". Nietzsche
Escrever com sangue, dor e prazer é falar do que corre em nossas veias. Falar de amor, ódio, sonho.
Ousar colocar, socializar para o outro, o que pensamos, somos, dói, "a dor é prova de existência". "A dor retrata a diferença." Não nos cabe fugir dela, e sim enfrentá-la "para a construção do prazer, do conhecimento de nós mesmos, do outro, da realidade".
Para isso é necessário conversar, dialogar com ela para que busquemos saídas, caminhos de enfrentamento no processo do conhecimento, junto com o outro. Buscar, conversar, tocar no outro, na sua ferida, faz parte da busca de comunicação.
"Minhas palavras são extensões do meu corpo, meus membros apoiam-se nelas (..) quem toca em uma das minhas palavras é como se tocasse na menina dos meus olhos (..) as palavras, podem matar", ou fazer nascer, desvelar, revelar o nascimento do outro para mim.
A marca única, genuína (sangrada) do autor emerge dessa busca de si mesmo contaminada do outro, na palavra. Dessa maneira quando escrevemos, não buscamos somente respostas únicas, mas sim essencialmente PERGUNTAMOS. Permanente inquietação de ser vivo, que nos remete a nós mesmos e à essência de nossa existência.
Por tudo isso, escrever é muito difícil. Compromete mais que falar.
Escrever deixa marca, registra pensamento, sonho, desejo de morte e vida.
Escrever dá muito trabalho porque organiza e articula o pensamento na busca de conhecer o outro, a si, o mundo.
Envolve, exige exercício disciplinado de persistência, resistência, insistência, na busca do texto verdadeiro, aquele que "o homem escreve com o seu próprio sangue ".
Reflexão e processo de formação do educador
O ato de refletir é libertador porque instrumentaliza o educador no que ele tem de mais vital: o seu pensar.
Educador algum é sujeito de sua prática se não tem apropriado a sua reflexão, o seu pensamento.
Não existe ação reflexiva que não leve sempre a constatações, descobertas, reparos, aprofundamento. E, portanto, que não nos leva a transformar algo em nós, nos outros, na realidade.
Na concepção democrática de educação, onde o ato de refletir (apropriação do pensamento) é expressão original de cada sujeito, está implícito que não existe um modelo de reflexão. Cada educador tem sua marca, o seu modo de registrar seu pensamento.
O importante é que cada um assuma este seu jeito, momento de hipótese em que se encontra dentro do seu processo.
Num primeiro momento a reflexão passa por um movimento de desintoxicação da visão autoritária que cada um viveu em relação à linguagem escrita.
A constatação é: "escrevo sem pensar"; "não consigo escrever e refletir" . É como se pensamento e linguagem escrita caminhassem dissociados. Conquista-se, nesse momento, um redimensionamento da linguagem oral e escrita, resgatando-se o próprio processo de alfabetização.
Re-descobre-se o significado do ato de escrever, não como habilidade mecânica, "escrita de letras" como diz Vygotsky, mas como comunicação de pensamento.
Dependendo da história de cada um esse movimento pode variar de intensidade e duração.
Com o exercício disciplinado da reflexão, e instrumentalizado pelo Educador, alcança-se uma fluidez desta ação generalizadora, teorizante. Fruto dessa conquista emerge a explícita necessidade de fundamentação teórica.
Pois, não existe prática sem teoria, como também não existe teoria que não tenha nascido de uma prática. Porque o importante é que a reflexão seja um instrumento dinamizador entre prática e teoria. Porém, não basta pensar, refletir, o crucial é fazer com que a reflexão nos conduza à ação transformadora, que nos comprometa com nossos desejos, nossas opções, nossa história.
Esta preocupação explícita pela fundamentação teórica é característica do segundo movimento.
Apropriando-se do que faz e pensa, o educador, sujeito pensante, começa a praticar a autoria de sua reflexão, assumindo - instrumentalizado pelo Educador - a condução do seu processo.
Bem diferente, então, daquele que no início do movimento de desintoxicação colocava fora de si a solução e as causas de seus males pedagógicos.
Bem diferente, também, daquele que se considerou formado. Estava morto e não sabia. Morto na sua criação, na sua curiosidade. Morto na sua capacidade de seduzir o outro (e se deixar seduzir) para a opção do prazer de construir, parir, seu processo de reflexão, construção de sua consciência pedagógica, política.
WEFFORT, Madalena Freire. Observação, Registro, reflexão: Instrumentos Metodológicos I. São Paulo: Espaço Pedagógico.